SØREN KIERKEGAARD
Florianópolis, Ed.2, n.01, Agosto/2021 – ISSN/2675-5203
SØREN KIERKEGAARD: UMA FENOMENOLOGIA DA ANGÚSTIA EM TEMPOS
LÍQUIDOS
SØREN
KIERKEGAARD: A PHENOMENOLOGY OF ANGUISH IN LIQUID TIMES
Marcelo Paschoal Pizzut
psicompp@gmail.com
PIZZUT, Marcelo Paschoal. Soren Kierkegaard:Uma fenomenologia da angústia em tempos
líquidos . Revista International Integralize Scientific, Ed.02, n.2, p. 74-82, Agosto/2021. ISSN/2675-
5203
INTRODUÇÃO
Antes de explorar o conceito de angústia, é essencial familiarizar-se com a vida de Søren Aabye Kierkegaard, o filósofo dinamarquês pioneiro em abordar o tema de maneira sistemática. Kierkegaard nasceu em 1813 em Copenhague, sendo o mais novo entre sete irmãos. A vida do filósofo foi marcada por adversidades, incluindo a perda de cinco irmãos e sua mãe num período de duas décadas.
Gouvêa (2000) destaca que Kierkegaard cresceu acreditando que as tragédias familiares e a prosperidade da família eram resultado de uma vingança divina. Ele foi criado sob uma educação cristã severa, que ele descreve em seus Diários e Papéis como um fardo melancólico que quase o consumiu.
Aos 17 anos, Kierkegaard ingressou na Universidade de Copenhague para estudar teologia. Contudo, após a morte de sua mãe em 1834, ele enfrentou uma crise de fé, abandonando os estudos e levando uma vida desregrada, frequentando bares e acumulando dívidas.
Após quatro anos, Kierkegaard retomou seus estudos e obteve um mestrado em Filosofia. Sua vida adulta foi igualmente tumultuada, incluindo uma dolorosa separação de sua noiva, Regina Olsen, que teve um profundo impacto em sua vida.
Kierkegaard’s filosofia é fortemente influenciada por suas experiências pessoais, refletindo os dramas existenciais que ele viveu. Ele é considerado como o pai do existencialismo, uma corrente filosófica que ele ajudou a moldar através de suas obras. Seu foco na angústia humana é visto como uma extensão de sua própria vida atormentada.
Kierkegaard faleceu em 1855 após sofrer uma queda. Hoje, ele é lembrado como uma figura central na filosofia existencialista. Compreender sua vida conturbada é fundamental para apreciar a profundidade e o contexto de seu tratamento sobre a angústia.
Conforme Oliveira (2013), a filosofia de Kierkegaard é um reflexo vívido das preocupações e conflitos existenciais que o assombraram desde a infância. Kierkegaard acreditava firmemente que a filosofia não deveria ser dissociada da existência concreta. Ou seja, a verdadeira filosofia não é apenas uma especulação teórica e abstrata, mas emerge da própria experiência da existência.
Ele argumenta que, ao questionar e refletir sobre a existência, já estamos operando dentro do domínio da ética. A ética, segundo ele, não pode ser uma mera abstração, mas deve estar firmemente enraizada na existência concreta, pois é aqui que os dilemas éticos têm o maior significado para o indivíduo. Ele enfatiza que é impossível entender completamente a existência apenas através da razão ou do pensamento, pois isso seria uma contradição. O pensamento, de acordo com Kierkegaard, de fato remove a existência de sua realidade concreta.
Isso leva a um ponto central na filosofia de Kierkegaard: o pensamento humano deve ser informado e moldado pela experiência da existência. É com essa compreensão que podemos abordar o tema da angústia, um conceito profundamente enraizado na experiência existencial.
Kierkegaard caracteriza a angústia como a “vertigem da liberdade”. É um estado que surge quando o indivíduo se depara com as infinitas possibilidades que a liberdade oferece e se sente oprimido. Ele descreve isso como se a liberdade estivesse olhando para o abismo de suas próprias possibilidades e, em resposta, se agarrasse à finitude como um meio de ancoragem. No entanto, neste ato, a liberdade percebe sua própria culpa. Kierkegaard fala de um “salto” entre esses estados, um salto que não pode ser explicado pela razão ou pela ciência.
Nas palavras de Kierkegaard, a angústia é a luta interna e a tensão que surge com a compreensão da nossa liberdade e das responsabilidades que isso acarreta. É um tema fundamental para a compreensão do pensamento existencialista e continua sendo uma contribuição valiosa para as discussões filosóficas sobre a natureza da existência humana.
Kierkegaard inicia sua reflexão sobre a angústia com referência ao mito bíblico da queda de Adão e Eva, que enfrentam a necessidade de fazer uma escolha. Ele identifica que a angústia nasce neste momento, quando eles são confrontados com a liberdade de escolher. Interessantemente, Kierkegaard sugere que o pecado não reside na escolha em si, mas na incapacidade de abraçar plenamente a liberdade que a escolha representa. Essa noção é ecoada pelo filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, que afirma que o ser humano é condenado a ser livre – condenado porque não se cria, e no entanto, livre e responsável por suas ações e escolhas.
Isso levanta uma questão importante sobre o papel da angústia na sociedade contemporânea, que é caracterizada por uma aparente dicotomia entre uma liberdade sem precedentes e uma onda de ansiedade, especialmente entre os jovens. Na atualidade, as pessoas têm mais liberdade do que nunca para se expressar, viajar e explorar diferentes identidades. Contudo, paralelamente, há uma busca incessante por significado, como evidenciado pelo florescimento de livros de autoajuda, coaching, terapias e medicamentos que procuram aliviar a angústia interna.
Pode-se questionar se essa angústia é resultado do vazio e da incerteza que a liberdade traz consigo. Zygmunt Bauman, o renomado sociólogo, refere-se a isso como “existência líquida” – um estado em que as antigas certezas se dissolvem e tudo se torna mais fluido e instável.
Este trabalho procura aprofundar a compreensão da angústia na sociedade moderna – uma sociedade paradoxalmente abundante em possibilidades, mas ao mesmo tempo vazia e ansiosa. Uma sociedade onde a solidão coexiste com a conectividade constante. As redes sociais, apesar do nome, frequentemente se distanciam da verdadeira interação social. Em um mundo virtual, as pessoas são muitas vezes prisioneiras atrás das telas, buscando validação através de “likes” e compartilhamentos. Nesta era da informação, ser invisível é quase sinônimo de inexistência.
Em suma, a angústia contemporânea pode ser vista como uma consequência da “existência líquida” de Bauman, onde a busca por significado e conexão na era da liberdade e da informação revela uma profunda dicotomia entre o anseio por pertencimento e a sensação de isolamento.
CULTURA DIGITAL E ANGÚSTIA
Pierre Lévy (1999) propõe que a humanidade sempre foi impulsionada por dois desejos fundamentais: a simulação do pensamento e a comunicação. É a partir desses anseios que a tecnologia avançou, culminando na criação do ciberespaço. Conforme Lévy, “quando o esforço de simulação do pensamento se encontra com as condições de comunicação, ocorre um avanço significativo, e as possibilidades de emergência do ciberespaço começam a se desenvolver” (BRITTO, 2009, p. 130). Além disso, uma terceira força dinâmica se junta a esses dois impulsos: o espírito humano, ou a alma, que busca liberdade e transcendência. Essa aspiração se manifesta concretamente na forma da internet.
A internet desmantela as barreiras pré-existentes, facilitando a “digitalização do simbólico”. Isso significa que toda a riqueza das construções simbólicas criadas ao longo dos séculos pode ser representada em forma digital através de bits 0 e 1, aberto ou fechado. A tecnologia digital, portanto, torna-se uma linguagem potente e revolucionária para codificar uma diversidade de informações e significados.
Isso nos leva a um ponto crítico onde é necessário inovar nas formas de comunicação através de novas linguagens e explorar espaços inéditos. A digitalização do simbólico abre as portas para um acesso global a um vasto repositório de conteúdo cultural. A rede se transforma em um tesouro colossal da imaginação humana, constantemente alimentado e atualizado com contribuições de culturas ao redor do mundo.
No entanto, o aspecto verdadeiramente revolucionário, e ao mesmo tempo inquietante, é que a criação de conteúdo não está mais restrita a um grupo seleto de indivíduos ou instituições. Agora, qualquer pessoa pode ser produtora de conteúdo simbólico. Isso representa uma mudança de paradigma que desafia as estruturas tradicionais que antes detinham o monopólio do conhecimento.
Dada esta nova realidade, é imperativo considerar as implicações éticas e morais. A capacidade de qualquer pessoa produzir e disseminar conteúdo simbólico traz consigo tanto oportunidades como desafios. É um momento de empoderamento, mas também levanta questões sobre a veracidade, a responsabilidade e o impacto desse conteúdo. Assim, na era da digitalização do simbólico, é fundamental que a sociedade reflita sobre as responsabilidades coletivas e individuais neste cenário em constante evolução.
O ciberespaço está estabelecido, pavimentando o caminho para o que pode ser visto como uma “unificação da humanidade”, ao facilitar a conexão entre bilhões de mentes. É uma rede de conexões que aglomera a subjetividade coletiva, permitindo a emergência de uma nova dimensão social. Mais do que simplesmente estar conectado, o indivíduo no ciberespaço é parte de uma teia de interconexões. O ciberespaço torna-se, portanto, um epicentro de conhecimento, uma metrópole repleta de signos, e um meio inovador de disseminação da comunicação e do pensamento coletivo. Nele, a comunicação ocorre de forma democratizada, onde cada indivíduo é simultaneamente emissor e receptor em um ambiente dinâmico e moldado pelos próprios participantes (LÉVY, 1999, p. 113).
É essencial reconhecer que o ciberespaço não é um mero instrumento isolado; é intrinsecamente entrelaçado com o tecido de nossas vidas diárias, servindo como um novo cenário existencial. Spadaro (2012, p. 17) caracteriza o ciberespaço como “um ambiente antropologicamente qualificado”, que não só alberga, mas também molda culturas, estilos de pensamento, e formas de educação, enquanto simultaneamente estimula a inteligência e facilita relacionamentos.
Conforme Gere (2008) articula, o termo “digital” assumiu um significado que transcende a mera noção de dados discretos ou de tecnologia que os utiliza. Agora, representa uma série de fenômenos que são intrínsecos à experiência contemporânea, incluindo simulações virtuais, comunicação instantânea, mídia onipresente e conectividade global. É um termo abrangente que encapsula um amplo espectro de aplicações e formas de mídia, que vão desde a realidade virtual e efeitos especiais digitais até música eletrônica, jogos de computador e telefonia digital. Além disso, a evolução do digital tem gerado diversas respostas culturais e artísticas, como romances e filmes cyberpunk, música techno postpop, “nova tipografia” e Net-Arte (Gere, 2008, p. 18).
Em suma, o ciberespaço tornou-se um ecossistema complexo e multifacetado que abriga e influencia as dimensões sociais, culturais e intelectuais da experiência humana. À medida que continuamos a explorar e moldar este ambiente, torna-se imperativo considerar o papel crítico que desempenha na definição do nosso mundo e como podemos navigar de forma responsável e inovadora dentro dele.
Agora, mais do que em qualquer outro momento da história, a humanidade encontra-se imersa em um oceano de liberdade. Através dos vastos meios de comunicação e das infindáveis oportunidades que a tecnologia proporciona, homens e mulheres da era contemporânea encontram-se não apenas imersos, mas quase que inexoravelmente compelidos para um estado de liberdade.
Neste cenário, Vermelho, Velho e Bertoncello (2015) conduzem uma análise perspicaz questionando se a cultura digital, forjada sob o domínio da rede, verdadeiramente manifesta uma liberdade autêntica. Os autores examinam o conceito multifacetado de “rede” e revelam uma dicotomia. Segundo o dicionário de língua portuguesa, as definições de “rede” podem ser agrupadas em três categorias: a primeira associada à restrição e aprisionamento, a segunda relacionada às estruturas de comunicação e transporte, e a terceira indicando proteção através de uma delimitação espacial. Notavelmente, os autores destacam que enquanto as redes podem conectar entidades em locais diferentes, facilitando comunicação e transporte, elas também podem ser empregadas em contextos onde o foco está na limitação de movimentos e, consequentemente, na restrição da comunicação (VERMELHO; VELHO; BERTONCELLO, 2015, p. 867).
A dicotomia torna-se ainda mais pronunciada quando o termo “rede” é associado ao conceito de “social”. Os autores argumentam que, historicamente, de filosofias gregas antigas a teorias políticas contemporâneas, projetos sociais e políticos não têm como base uma sociedade fundamentada exclusivamente em relações verticais. Ao contrário, há uma presença inerente de hierarquias. Nesse contexto, as redes sociais apresentam um paradoxo, pois oferecem experiências relacionais que divergem das que são vivenciadas na vida cotidiana. Enquanto, geralmente, nas esferas sociais tradicionais, as relações são organizadas hierarquicamente, nas redes sociais, esta hierarquia é dissolvida. Aqui reside um ponto crítico onde o conceito de rede, em vez de representar comunicação, pode ser interpretado como confinamento, já que pode não promover o desenvolvimento social, mas em alguns aspectos, restringi-lo.
Castells (2003) contribui para essa discussão observando que a natureza maleável da internet a torna um caldeirão de tendências contraditórias. Segundo ele, a internet não é nem uma utopia nem uma distopia, mas sim um reflexo de nossas próprias identidades, expressas através de um código de comunicação específico. Ele enfatiza a importância de compreender esse código se desejarmos transformar nossa realidade. Além disso, Castells sugere que a invenção da internet reforça a noção de que cooperação e liberdade de informação podem ser mais férteis para inovação do que competição e direitos de propriedade (p. 75).
Em suma, a interseção da tecnologia, redes e liberdade é um domínio complexo que abriga tanto potencial como desafios. A cultura digital, forjada nas redes, nos oferece um amplo leque de possibilidades para comunicação, aprendizado, colaboração e criatividade. No entanto, essa mesma cultura nos confronta com questões críticas sobre como a estrutura das redes pode, em certos contextos, limitar a liberdade ao invés de potencializá-la.
As redes sociais, em particular, são um exemplo de como a tecnologia pode criar plataformas para comunicação democrática e compartilhamento de ideias, mas também podem, paradoxalmente, confinar os indivíduos em câmaras de eco, perpetuar desinformação e, em certos casos, reforçar hierarquias ou criar novas.
É imperativo, então, abordar a cultura digital e as redes com um olhar crítico e reflexivo. Devemos estar conscientes do papel que a tecnologia desempenha em moldar a sociedade e reconhecer que seu impacto pode ser tanto libertador quanto restritivo.
Educar-se e educar as futuras gerações sobre os usos éticos e responsáveis das tecnologias digitais é fundamental. É necessário também que haja políticas bem formuladas e regulação equilibrada que estimulem a inovação, mas também protejam os direitos e liberdades dos indivíduos.
Nesse contexto, é válido promover diálogos abertos e inclusivos sobre os rumos da cultura digital. Estes diálogos devem englobar diversas perspectivas e áreas de conhecimento, de modo a garantir que as redes sirvam como um instrumento para o avanço da humanidade, ao invés de se tornarem um mecanismo de restrição.
Afinal, o ciberespaço, como mencionado anteriormente, é o locus do conhecimento e comunicação. É nossa responsabilidade coletiva garantir que ele seja também um espaço de genuína liberdade, inclusão e crescimento para todos, sem exceção.
Enquanto navegamos neste mar digital, devemos manter os olhos abertos, as mentes críticas e os corações atentos às ondas de possibilidades e aos redemoinhos de desafios. A humanidade está lançada à liberdade no ciberespaço; que façamos essa jornada com sabedoria, compreensão e uma bússola moral.
A partir da citação, é possível extrair algumas reflexões essenciais. A primeira sugere que as redes sociais deveriam servir como plataformas de colaboração e troca construtiva, em vez de arenas de competição e imposição de ideias e ideologias. A segunda constatação indica que as redes sociais, assim como muitas outras inovações ao longo da história humana, foram desenvolvidas para atender a necessidades específicas, sejam elas tangíveis ou intangíveis.
Dado isso, torna-se imperativo indagar sobre as necessidades que as redes sociais vêm atendendo dentro do contexto humano. Além disso, é crucial entender os desafios e dilemas que surgem como consequência dessa dinâmica.
As redes sociais podem atender a várias necessidades. Por exemplo, elas podem ajudar a suprir o desejo humano de pertencer e conectar-se com os outros, permitindo que as pessoas mantenham contato com amigos e familiares, independentemente da distância. Também podem servir como uma fonte de informação e aprendizado, oferecendo acesso a uma variedade de conteúdos e conhecimentos.
Entretanto, junto a esses benefícios, as redes sociais também trouxeram consigo questões preocupantes. A angústia mencionada pode surgir de várias formas, como a sensação de inadequação através da comparação constante com os outros, a polarização de opiniões que pode levar ao isolamento dentro de bolhas de pensamento, e a disseminação de informações falsas ou tendenciosas.
Além disso, há a questão da exploração da atenção humana. As redes sociais são projetadas para capturar e reter a atenção dos usuários o máximo possível, o que pode levar a comportamentos compulsivos e, em alguns casos, ao vício.
Portanto, é vital que haja uma abordagem equilibrada no uso das redes sociais. É importante promover a alfabetização digital, ensinando aos usuários como usar essas plataformas de maneira responsável e ética. Além disso, devemos encorajar um ambiente de respeito, diálogo e empatia nas redes sociais, onde as ideias possam ser compartilhadas e debatidas construtivamente, em vez de serem impostas.
Em última análise, as redes sociais têm o potencial de ser uma ferramenta poderosa para o enriquecimento humano, mas isso exige que sejam utilizadas com consciência e responsabilidade, considerando o bem-estar coletivo e individual.
A ANGÚSTIA ENQUANTO PROBLEMA DA LIBERDADE
Como destacado previamente, a questão da angústia é abordada dentro do contexto da Filosofia Existencial. É notável que a cultura digital em que vivemos atualmente apresenta um paradoxo: embora ofereça uma sensação de liberdade sem precedentes, também expõe o indivíduo como um ser enjaulado. Isso pode parecer contraditório à primeira vista, mas uma análise mais aprofundada das ideias de Kierkegaard revela maior clareza.
Santos (2010) observa que a liberdade é uma essência puramente abstrata, e na prática, não pode ser experimentada como uma possibilidade ilimitada. Portanto, é sentida como angústia, que destaca os obstáculos à liberdade e nos torna conscientes de que, entre inúmeras possibilidades, apenas uma pode ser concretizada, enquanto as outras devem ser deixadas para trás. Este é o início da angústia humana no contexto da cultura digital, onde o indivíduo percebe a amplitude de opções, mas se vê restrito pelas próprias limitações.
Heidegger (1998) adiciona uma perspectiva complementar, sugerindo que a angústia é uma resposta à presença simultânea de todas as possibilidades e nenhuma, ao mesmo tempo. No universo da cultura digital, tudo parece estar ao alcance do indivíduo, mas nem todas as opções são viáveis ou benéficas, não necessariamente devido a restrições morais, mas porque o ser humano não tem a capacidade de abraçar um leque tão vasto de escolhas simultaneamente.
Tomemos um exemplo prático: frente a um catálogo de filmes on-line, um assinante se depara com um oceano de opções, variando entre filmes, séries e documentários. Neste cenário, o assinante possui a liberdade de escolha, entretanto, frequentemente não se sente mais contente do que quando tinha uma única opção disponível na programação de TV. A angústia surge da abrangência de escolhas e do reconhecimento de que, apesar da variedade, apenas uma opção pode ser selecionada.
Esta angústia pode se estender para questões mais profundas e sérias do que a mera escolha de entretenimento. Na cultura digital, somos constantemente bombardeados com imagens e histórias de “vidas perfeitas”, seja através de corpos idealizados ou estilos de vida aparentemente sem falhas, como os frequentemente retratados por influenciadores digitais. Isso pode levar a uma sensação de inadequação e ansiedade, pois o indivíduo pode se sentir incapaz de atingir esses ideais.
É crucial reconhecer que, embora a cultura digital ofereça oportunidades e liberdades aparentemente infinitas, também pode ser uma fonte de angústia. É importante cultivar a consciência e a reflexão crítica sobre as escolhas que fazemos e as influências que permitimos em nossas vidas, e buscar um equilíbrio que permita um engajamento saudável e significativo com o mundo digital.
Neste cenário, a angústia se manifesta na inabilidade de abarcar o ilimitado. A cultura digital expõe uma observação perspicaz de Kierkegaard: “o Eu é uma síntese do finito que delimita e do infinito que não tem limites” (KIERKEGAARD, 1988, p. 208). Isso significa que o homem moderno enfrenta o desafio de equilibrar essa tensão entre os elementos finito e infinito na tentativa de conferir sentido à sua existência, de modo que esta vá além de um mero “estar no mundo”. No entanto, isso transforma o indivíduo em um “viajante perpétuo” em busca de significado e de uma existência autêntica.
Juntamente com a angústia, Kierkegaard introduz outro conceito fundamental à experiência humana: o desespero. Segundo o filósofo, o desespero humano está intrinsecamente ligado à falha em reconciliar a condição humana, com suas contradições e paradoxos. O homem é finito, porém almeja o infinito; ele aspira transcender sua natureza finita.
Na filosofia de Kierkegaard, o desespero emerge quando o espírito anseia pela síntese entre o finito (corpo/material) e o infinito (espírito) para dar origem ao “EU EXISTENCIAL”. Esse EU EXISTENCIAL representa uma integração e harmonia entre os aspectos finitos e infinitos da existência.
Em um mundo inundado pela cultura digital, onde as possibilidades parecem infinitas e os estímulos são inesgotáveis, a angústia e o desespero podem se intensificar. O indivíduo é continuamente confrontado com as limitações do finito ao mesmo tempo em que é seduzido pelas promessas do infinito oferecidas pela tecnologia e pela conectividade global.
Para navegar neste mar de complexidades, é vital que os indivíduos adotem uma abordagem reflexiva e crítica, questionando o valor e o propósito das infinitas opções apresentadas pela cultura digital. Também é importante reconhecer as limitações humanas e buscar um equilíbrio que permita uma relação mais harmoniosa entre os aspectos finitos e infinitos de nossa existência. Ao fazer isso, é possível trilhar um caminho em direção a uma vida mais autêntica e significativa, mesmo em um mundo onde a tensão entre o finito e o infinito está constantemente presente.
EXISTÊNCIA LÍQUIDA E A SUPERAÇÃO DA ANGÚSTIA
O renomado sociólogo polonês Zygmunt Bauman destaca-se como um dos intelectuais mais perspicazes e influentes dos tempos recentes. Suas reflexões são argutas, lúcidas e profundamente enraizadas na realidade contemporânea. Bauman é particularmente conhecido por seu conceito de ‘liquidez’, que caracteriza a natureza da sociedade pós-moderna. Segundo ele, a sociedade pós-moderna é marcada pela fluidez em que as relações sociais e estruturas se desenvolvem, diferentemente da modernidade, onde a sociedade estava fundamentada em estruturas mais sólidas e estáveis.
Ele descreve a transição da fase ‘sólida’ da modernidade para a ‘líquida’ como uma transformação na qual as estruturas sociais – aquelas que restringem escolhas individuais e asseguram repetição de comportamentos – não conseguem mais manter sua forma por muito tempo, pois se desintegram mais rapidamente do que podem ser moldadas (BAUMAN, 2007, p. 7).
Em sua obra, Bauman identifica cinco aspectos que exemplificam a natureza líquida da sociedade contemporânea. Um desses aspectos é a fragilidade dos laços interpessoais, que antes formavam uma rede de segurança que justificava um investimento considerável de tempo e esforço, além de frequentemente requerer a renúncia de interesses individuais imediatos. Atualmente, esses laços são cada vez mais frágeis e efêmeros.
Neste contexto, a sociedade é mais frequentemente vista e abordada como uma ‘rede’, ao invés de uma ‘estrutura’. Esta rede é caracterizada por conexões e desconexões imprevisíveis, e por um leque quase infinito de combinações possíveis. Existe uma espécie de compulsão implícita em abraçar todas as possibilidades concebíveis, talvez como uma tentativa de aliviar a angústia de um anseio inconsciente por imortalidade. Essa ansiedade em abarcar todas as possibilidades transforma, metaforicamente, tudo em líquido. Tudo torna-se líquido para permitir a fluidez e acessibilidade, mas, paradoxalmente, como sugere um provérbio popular, quando tudo é possível, nada é substancial.
Essa fluidez constante pode ser vista como uma resposta à busca incessante por significado e realização, mas também carrega consigo o risco de superficialidade nas relações e no comprometimento. Neste ambiente de liquidez, é essencial para os indivíduos cultivar um senso de identidade sólido e buscar relações e objetivos que possuam significado duradouro, contrapondo-se à transitoriedade que permeia a sociedade pós-moderna.
Em uma de suas obras, Bauman discorre sobre como a modernidade nasceu sob o símbolo da ordem. Neste paradigma, a missão perene da humanidade era submeter tudo à razão, implicando supervisão rigorosa e administração de todas as coisas com um grau de precisão meticuloso. Esse esforço era direcionado a fazer do mundo algo gerenciável e a administrá-lo de forma tão diligente quanto possível para eliminar imprevistos e contingências (BAUMAN, 2002). Contudo, na pós-modernidade, há uma guinada drástica, uma vez que as pessoas agora buscam escapar da ordem, que é percebida como algo restritivo que impede a experimentação de novas sensações e experiências. Em suma, a ordem é vista como algo que aprisiona.
Contudo, ao escapar da ordem, o que se revela é um terreno de incertezas e uma intensificação da angústia. Bauman afirma que “A incerteza é o habitat natural da vida humana, embora a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas” (BAUMAN, 2009, p. 37). Ele sugere que a busca por fugir das incertezas é um elemento essencial nas imagens de felicidade que as pessoas almejam. Contudo, como a felicidade é como um horizonte que parece recuar à medida que avançamos em sua direção, ela permanece sempre fora de alcance.
Nesse cenário, onde a incerteza se torna um fenômeno onipresente, a única certeza que resta é a da finitude humana e da inevitabilidade da morte, o que, conforme expresso por Heidegger, dá origem à angústia.
É importante destacar que, conforme discutido por filósofos existencialistas e particularmente por Kierkegaard, a angústia existencial não é inerentemente neurótica ou patológica. Ela é um componente essencial da experiência humana que confere sentido à autonomia e à liberdade. Entretanto, quando os indivíduos criam mecanismos para controlar ou eliminar essa angústia, ela pode metamorfosear-se em uma característica patológica e debilitante. A não aceitação da angústia, assim, torna-se a pior maneira de lidar com um fenômeno que é fundamentalmente humano.
Em vez de fugir da angústia, pode-se argumentar que aceitá-la e abraçá-la como parte integrante da condição humana pode levar a uma compreensão mais profunda do eu e das complexidades da vida. Isso implica aceitar a incerteza como parte da jornada humana e buscar significado e propósito dentro desse contexto, sem a ilusão de um controle absoluto.
Oliveira (2003) faz uma distinção crucial ao enfatizar que, na filosofia de Kierkegaard, a angústia não deve ser confundida com inquietação, ansiedade, temor, ou desespero. Embora essas categorias sejam experiências comuns na vida humana, elas não capturam a essência mais profunda e fundamental da existência que a angústia representa. A angústia a que Kierkegaard se refere é existencial por natureza e não está vinculada a um momento específico ou a um objeto concreto. Em vez disso, é um estado mais enraizado na condição humana que, paradoxalmente, pode se tornar superficial quando há uma tentativa de negar ou escapar dela.
À medida que a sociedade moderna se torna cada vez mais fluida, a angústia inerente à condição humana é acompanhada por uma miríade de emoções e sentimentos negativos, como solidão, vergonha, ansiedade e depressão. Esses estados mentais, muitas vezes vistos como patologias, são sintomas de uma sociedade em constante mudança e refletem a dificuldade em encontrar um terreno sólido.
Kierkegaard propõe que a angústia é, por sua natureza, vaga e indeterminada. Essa qualidade a torna uma companheira constante na jornada da vida. Assim, ele sugere que não há alternativa senão confrontar e experimentar essa angústia, pois evitá-la não é uma solução viável. Em vez de procurar aliviar as pessoas de sua angústia, Kierkegaard argumenta que é mais valioso ensinar-lhes a conviver com ela e experimentá-la de forma significativa.
Nesse contexto, a angústia se torna não apenas um elemento da condição humana mas também uma força que pode enriquecer a experiência de vida. Quanto mais profundamente uma pessoa se envolver com sua própria angústia como uma experiência existencial, mais autêntica e humana sua existência se tornará.
Kierkegaard, portanto, não oferece uma fórmula para escapar da angústia, mas sim um convite para abraçá-la como uma parte intrínseca da jornada humana. Através dessa perspectiva, a angústia pode se transformar de um fardo opressor em uma fonte de aprendizado e crescimento pessoal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, foi possível explorar a filosofia existencialista de Søren Kierkegaard, um pensador seminal que ofereceu um exame profundo e abrangente da angústia como uma condição intrínseca à humanidade. Foi revelado que Kierkegaard não somente refletiu sobre a angústia como um conceito, mas também experimentou pessoalmente seus desafios e benefícios.
Inspirados por Kierkegaard, outros filósofos, como Heidegger, também se empenharam em analisar a angústia. Notavelmente, na filosofia de Kierkegaard, a angústia está intrinsecamente ligada à liberdade humana, de tal forma que ambas são quase sinônimas em seu pensamento.
A complexidade emerge na interseção entre liberdade e angústia. Como Sartre afirmou, a liberdade pode ser vista como um veredito ao qual a humanidade está submetida, e, nesse contexto, a angústia aparece como a sentença suprema que acompanha essa liberdade. Isso pode ser esmagador, e poucos conseguem suportar esse fardo.
Esse desafio é amplificado na era contemporânea com o advento da cultura digital, que cria um ambiente onde a liberdade é potencializada, mas, simultaneamente, intensifica a angústia existencial. A angústia, que antes era reconhecida como parte natural da condição humana, tornou-se uma carga quase insuportável para muitos na sociedade moderna.
A necessidade de possuir e acumular torna-se uma tentativa de aliviar essa angústia, especialmente à medida que os indivíduos enfrentam o reconhecimento de sua própria finitude e da inevitabilidade da morte. Esta busca frenética por acumulação cria uma ilusão de que, ao ter tudo, de alguma forma se pode escapar da angústia. No entanto, paradoxalmente, essa busca incessante por ter tudo pode, na realidade, resultar em um sentido de vazio, pois se torna um substituto superficial para o engajamento genuíno com a profundidade da experiência humana.
Portanto, é imperativo reconhecer a angústia não como algo a ser evitado, mas como uma parte essencial da jornada humana que pode oferecer insights e crescimento quando abordada com reflexão e autenticidade.
Na pós-modernidade líquida, a sociedade se molda como o cenário ideal para aqueles que se veem incapazes de enfrentar a angústia, e, como consequência, buscam refúgio na fluidez da vida que lhes concede a possibilidade de experimentar um sem-fim de coisas e relações. Neste contexto, a ordem e a solidez cedem espaço ao acúmulo frenético de objetos e experiências. Entretanto, esse acúmulo revela-se como um poço de vazio, pois a angústia existencial permanece latente, ansiando por ser compreendida e genuinamente vivenciada ao invés de ser iludida e negligenciada.
Em uma sociedade que idolatra a velocidade e a superficialidade, a angústia existencial, que deveria servir como um catalisador para reflexão e crescimento pessoal decorrentes da liberdade, é muitas vezes mascarada ou substituída por sentimentos como ansiedade, medo, e obsessão. Esses sentimentos, por sua vez, são sintomáticos de uma relutância ou temor em enfrentar a essência da condição humana.
É crucial reconhecer que, ao evitarmos a profundidade que a angústia pode revelar, negamos a nós mesmos a oportunidade de explorar e compreender a riqueza da experiência humana em toda sua plenitude.
Em contrapartida, a sociedade líquida e o seu contínuo estado de fluxo, ao invés de serem vistos somente como um lugar de refúgio para escapar da angústia, poderiam ser também percebidos como um convite para nos adaptarmos e encontrarmos significado em meio à mudança e incerteza.
Ao abraçar a angústia como uma parte intrínseca da liberdade e da experiência humana, podemos nos tornar mais resilientes, autênticos, e capazes de encontrar significado em um mundo em constante transformação. Este processo envolve reconhecer e aceitar a nossa vulnerabilidade, permitindo-nos explorar e aprender com a complexidade da vida em sua essência.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. La Sociedad Sitiada. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 181 p. Disponível em: http://zahar2.tempsite.ws/doc/t1266.pdf. Acesso em: 10 jun. 2021.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
BRITTO, R. Cibercultura: Sob o Olhar dos Estudos Culturais. São Paulo: Paulinas, 2009.
CASTELLS, Manuel. A Galáxia Internet: Reflexões Sobre a Internet, Negócios e a Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
GERE, Charlie. Cultura Digital. Londres: Reaktion Books, 2009.
GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Novo Século, 2000.
HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. 2. ed. Tradução de Jorge Eduardo Rivera. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998.
KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano (Doença até à Morte). 1947. p. 211-211.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor. Lisboa: Edições 70, 1986.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, Coleção Trans, 1999.
OLIVEIRA, André Luis Holanda de. A Noção de Existência Autêntica em Kierkegaard. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2003. 113 p. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/6493/1/arquivo9009_1.pdf. Acesso em: 12 jun. 2021.
SANTOS, Rosângela Ribeiro dos. O Conceito de Angústia na Obra Homônima de Sören Aabye Kierkegaard. Dissertação (Mestrado em Filosofia). São Paulo: Faculdade de São Bento, 2010. 144 p. Disponível em: http://faculdadedesaobento.com.br/files/pesquisas_46475310-10547490-9328-052015.pdf. Acesso em: 12 jun. 2021.
SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).
SPADARO, Antonio. Ciberteologia: Pensar o Cristianismo nos Tempos da Rede. São Paulo: Paulinas, 2012.
VERMELHO, Sônia Cristina; VELHO, Ana Paula Machado; BERTONCELLO, Valdecir. Sobre o Conceito de Redes Sociais e Seus Pesquisadores. Educação e Pesquisa, v. 41, n. 4, p. 863-881, 2015.
Fale comigo agora:
clique aqui
Marcelo Paschoal Pizzut
Psicólogo Clínico
Deixe um comentário